Vila Notícias – Vegetação rasteira, solo rachado, poços de 20 metros de profundidade perfurados nos quintais das casas. O cenário lembra o interior nordestino do país, apesar de estarmos em Pinheiros, no extremo Norte, um dos 24 municípios do Espírito Santo que estão em situação de desertificação.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, o “sertão capixaba” já abarca uma área de 16.679 quilômetros quadrados – equivalente a 36% de todo o território estadual -, onde o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de muitas localidades também se assemelha ao de regiões mais pobres do Nordeste (abaixo de 0,500).
São municípios vítimas da intensa devastação do solo e dos recursos hídricos e que passam ainda por severas mudanças climáticas.
“Quando a região deixa de ser produtiva, tende a ser abandonada, ou usada pelo extrativismo, e começa a ter bolsões de pobreza. Uma coisa leva a outra”, explica o professor da Ufes, Fábio Ribeiro Pires, doutor em agronomia e especialista em conservação do solo e da água.
Em municípios como São Gabriel da Palha, os longos períodos de seca têm levado muitas famílias a deixarem o campo.
“Quem tem dinheiro perfura o lençol freático. Quem não tem, fica sem irrigar e, por isso, não colhe. Nessa situação, que filho vai querer ficar no campo, se o dinheiro do produtor não dá nem para comprar uma moto para ele andar?”, critica o agricultor Jairo Donath, 48 anos, segurando um punhado de terra seca sobre o local onde tinha um reservatório de água, no Córrego Araras.
O Programa Nacional de Combate à Desertificação foi apresentado em 2005, revelando que Espírito Santo e Minas Gerais são os únicos Estados fora do Nordeste que têm áreas nessa situação. Naquela época, a substituição da vegetação natural por eucalipto, café e por imensas áreas de pastagens já era apontada como grande responsável pela desertificação no Estado, o que colocava em risco o futuro da agricultura e das comunidades rurais.
“Os solos encontram-se muito degradados, em função da baixa utilização de medidas de proteção e de controle da erosão”, dizia, na época, o programa.
Desde então, pouco foi feito para reverter esse quadro, e o Espírito Santo já tem mais municípios sob risco de desertificação do que Estados como Rio Grande do Norte (3), Paraíba (11), Pernambuco (6), Alagoas (7) e Sergipe (14). Como essas áreas estão cada vez mais secas, os confrontos por água ficam mais intensos.
Apenas Colatina, Nova Venécia e Rio Bananal contabilizaram, só em 2015, 124 ocorrências policiais envolvendo disputa por água. “O produtor tem que produzir, mas é preciso saber o que cultivar. Algumas culturas exigem muita água. Como não dá para todo mundo usar, isso gera muitas brigas”, afirma promotora de Justiça Vera Lúcia Murta, que atua há 14 anos em áreas de conflito.
Preocupado com o futuro das áreas em situação de desertificação, o professor da Ufes ressalta que as monoculturas praticadas incorretamente e o pastoreio excessivo diminuem a capacidade que a terra tem de filtrar a água.
“Deixa o solo seco, duro, e a chuva escoa na superfície em forma de enxurrada, assoreando os córregos e arrastando os agroquímicos para os rios e oceanos. O problema não é retirar a cobertura florestal, mas sim praticar atividades agrícolas insustentáveis, que tiram a fertilidade do solo e desabastecem os lençóis”, destaca.
A maior parte dos municípios sob risco de virar deserto começou a ser desmatado já no final da década de 1920, após a construção da imponente ponte sobre o Rio Doce, em Colatina. Na época, o governador Florentino Avidos pretendia interligar os dois lados do estado e levar o progresso à região mais ao Norte. E conseguiu.
Nas décadas seguintes, a região foi totalmente ocupada por filhos de colonos que saíram do Sul do estado, mas isso aconteceu às custas da destruição ambiental.
Vila Pavão
Da floresta original, sobrou menos de 15%. A pequena Praça Rica, que ganhou esse nome devido à farta área de mata virgem encontrada pelos colonizadores, foi um desses locais afetados. Localizado em Vila Pavão, o vilarejo teve vegetação derrubada e, nas décadas seguintes, esse território foi substituído por imensas áreas exploradas pela mineração, pastagem e monoculturas.
Nos últimos anos, o córrego que abastece a comunidade tem ficado tão seco e a prefeitura começou a cavar um poço profundo para abastecer a população, já que as irrigações sugam toda a água do manancial.
A crise hídrica chegou ao extremo nos últimos meses de 2015, quando o córrego secou por completo e os 400 moradores passaram a ser abastecidos por caminhões-pipa, bancados pela prefeitura.
Quem mora na vila, hoje, percebe a eliminação quase completa das riquezas naturais. “A gente continua morando aqui porque é persistente, mas é difícil”, desabafa o comerciante David Pagung, de 46 anos.
Com a redução das áreas agricultáveis, o fator migratório também atingiu o município. A prefeitura estima que Vila Pavão tenha perdido mais de 5 mil habitantes desde quando foi fundado, em 1992.
Boa parte das famílias que deixou a região migrou para Rondônia, no Norte do país, quando o governo de lá começou a distribuir terras, também vislumbrando o povoamento.
“O agricultor está impedido de irrigar e, por isso, não produz. Sem lucro, não movimenta o comércio, que é totalmente dependente do meio rural. Isso vira uma bola de neve. As pessoas vão embora do campo pois estão sem perspectivas”, completa Pagung.
Por meio de nota, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente informou que vai contratar uma instituição especializada para a conclusão do Plano de Combate à Desertificação do Espírito Santo, iniciado em 2005.
O estudo será feito por meio de recursos do Banco Mundial, via contrato assinado recentemente envolvendo o Programa Águas e Paisagens. O governo do Estado disse ainda que vem atuando no Norte e Noroeste do Espírito Santo com ações que visam “a minimizar os problemas”, por meio de ações como a ampliação da cobertura florestal.
A volta dos burros e ‘corotes’
São 6 horas da manhã em Angelim III, uma das principais comunidades quilombolas de Conceição da Barra.
Itelvina Santos prepara o café, põe o arreio no burro, chamado Canário, e sai em busca de água. Volta cinco horas depois, com uma pequena porção de água barrenta.
Desde a implantação do Programa Luz Para Todos nas comunidades rurais no extremo Norte, em 2005, os burros e “corotes” (espécie de recipiente que armazena líquido) praticamente passaram a ser substituídos por bombas elétricas capazes de puxar água em córregos e poços distantes.
Mas esses dois elementos típicos de sertão voltaram à cena, nos últimos anos.
Se antes a dificuldade era não contar com energia elétrica, hoje o que impede a água de chegar às torneiras é a construção sem controle de barragens e poços para alimentar grandes latifúndios. “Está tudo represado para molhar cana e eucalipto. Não sobra nada para o consumo”, lamenta Itelvina, que tem 69 anos.
Em municípios como Conceição da Barra, Pinheiros e São Mateus, muitas vezes a fonte mais próxima está a 3 ou 5 quilômetros de casa, o que torna necessário uma verdadeira peregrinação, de mais de 5 horas, sob um sol escaldante.
“Basta uma pequena estiagem e já não temos água para puxar do poço nem de córregos. Às vezes, passo de 15 a 20 dias seguidos buscando água no lombo do burro. Ninguém quer ficar no campo porque não tem água para produzir. Dos meus oito filhos, apenas um resistiu”, lamenta Italvina.
Na comunidade, muitos moradores fazem questão de lembrar que antes faltava energia elétrica para puxar a água, agora falta água para a bomba puxar. “O lampião e o querosene deixaram de ser necessários. A energia chegou. Mas a maior conquista, que foi a água, agora não pode ser usada porque está poluída ou represada”, afirma Altiane Brandino, conhecido como Pipi, de 45 anos.
De acordo com o pesquisador da Ufes, Fábio Ribeiro Pires, São Mateus e Conceição da Barra têm uma ocorrência de chuva maior do que a média dos municípios em área sob risco de desertificação e, por esse motivo, não foram incluídos na lista.
Fato que não torna menos grave a situação de mau uso do solo na região, completa o professor. “Onde a gente passa e vê pastagens com solo descoberto, com presença de erosão, é sinal de que pode se desertificar um dia”, completa o professor.
Fonte: G1.