O pai aninhou o filho contra o peito na hora de sair de casa. Era pra ser uma despedida. Depois de seis anos do nascimento do menino, o casal percebeu que aquela relação já não fazia mais sentido. Só que o abraço recíproco, do filho contra o pescoço do pai, veio junto de um pedido: “Papai, eu quero ir com o senhor”.
Não que o menino tivesse problemas com a mãe. Nunca teve. Mas o grude com o pai era culpa do futebol e o moleque amava bola. Como o pai. O menino queria jogar o dia todo e o pai deixava. Ele arrancava a tampa do dedão do pé chutando bola no asfalto. O pai sabia que era um machucadinho de nada e nem ligava. No dia seguinte, o menino estava lá de novo.
Antônio trabalhava como marteleiro numa pedreira no município de Vila Pavão, a 45 quilômetros de Nova Venécia, no interior do Espírito Santo, e Charlinho ia para a escola. A rotina filho não durou mais que um ano: o garoto queria fazer aulas de futebol em uma escolinha e a mais próxima ficava em outra cidade.
Os dois pegaram um ônibus até a casa de Audiceia, irmã e melhor amiga de Antônio. O pai achava que era a única chance para Charlinho poder treinar e estudar. Ele deixaria o filho com a irmã e daria um dinheiro mensal para ajudar com as despesas. Ela só precisaria aceitá-lo. Antônio chegou à casa de Audiceia com uma sacola de supermercado cheia de roupas de criança. “Se você não cuidar dele, não sei o que vou fazer”.
Audiceia estava grávida de sete meses do filho caçula João e cuidava de mais três crianças num barraco de quatro cômodos na Rua Fornazieri, no bairro do Rúbia, em Nova Venécia. Mas onde cabem três cabem quatro ou cinco. Charlinho morou com Audiceia até os 13 anos. Naquela casa, que alagava a cada chuva, ele começou a virar o Richarlison que você conhece, que em 2022 é atacante da seleção brasileira que busca o hexa na Copa do Mundo do Qatar.
Tia de Richarlison, Audiceia vivia um relacionamento conturbado com o então marido. Os dois dividiam o único quarto grande da casa com o sobrinho e os quatro filhos (João estava na barriga da mãe). Todos dormiam na mesma cama, amontoados. O barraco tinha outro quarto, menor, usado para guardar roupas e utensílios, além de uma cozinha pequena e uma área externa minúscula.
Audiceia de Andrade, tia de Richarlison
A casa em que Audiceia, o marido e as crianças moravam custava R$ 180 por mês ao casal. Foi o menor valor que a família encontrou quando veio da roça para a cidade. O valor abaixo da média era justificável pela gama de perrengues que vinha junto. “Antes de chover no Nordeste, já alagava aqui”.
A cada chuva que o cheiro do vento denunciava estar por vir, Audiceia sentia o coração acelerar. Ela previa que boa coisa não haveria de ser. Não tinha um cômodo sequer da casa que não alagasse quando chovia. Não havia como solucionar a não ser cobrir os móveis com uma lona e torcer pra passar logo.
Audiceia deitava as cinco crianças no sofá e ela e o marido ficavam com os pés na água turva, sem previsão de descanso. Quando a madrugada não trazia alento à aguaceira, Audiceia juntava as crias debaixo da mesa de jantar. O bebê João, com pouco menos de um ano, ficava sobre uma cadeira enquanto os outros se deitavam ao redor. “Era o único lugar que não molhava”, ela conta.
O ex-casal, então, passava a noite em claro vigiando os filhos e o sobrinho Charlinho. Não dormiam. Quando o dia nascia, os dois saíam para trabalhar e começava tudo de novo.
Reportagem: Uol.